Juventudes, religião e política: o que há de novo no Brasil do século XXI?
Espiritualidade
30 julho 2020

Juventudes, religião e política: o que há de novo no Brasil do século XXI?

Para gerações passadas, “ser brasileiro e ser católico” era uma equação natural. A hegemonia católica no campo religioso brasileiro pesou na conformação do território nacional, na composição de nossa cultura e no estabelecimento do calendário oficial dos feriados nacionais.

Por séculos, os herdeiros da Reforma do século XVI (batistas, presbiterianos, luteranos, metodistas etc.) tiveram crescimento vagaroso, sem estabelecer concorrência com a Igreja Católica. Também os adeptos de religiões de matriz africana, denominadas afro-brasileiras, não ameaçavam o catolicismo, pois – vivenciando um duplo pertencimento religioso – seus adeptos, em sua maioria, também se declaravam católicos.

No entanto, nas últimas décadas evidenciaram-se muitas mudanças no pertencimento religioso dos brasileiros. Segundo dados oficiais (Censo do IBGE), progressivamente diminuíram os brasileiros que se declaram católicos: esses somavam 89% em 1980; 83,3% em 1991; 73,6% em 2000 e 64,6% em 2010. Hoje já serão bem menos.

Ao mesmo tempo, a partir no começo do século XX, chegaram os “crentes pentecostais” que – com suas ofertas de êxtase religioso e seu ativismo proselitista – alavancaram o crescimento dos evangélicos. Segundo os Censos do IBGE, temos os seguintes números: 6,6% (1980); 9% (1991); 15,4% (2000) e 22,2% (2010). Hoje já serão bem mais. Tal crescimento foi feito por meio de centenas de denominações independentes entre si, com tamanhos e características bastante diversas, que incluíram quantidade significativa de jovens.

Nos dados censitários também estão registradas as presenças de jovens adeptos das religiões afro-brasileiras, de espíritas kardecistas e, ainda, de religiões orientais, de judeus e islâmicos. Porém, em termos estatísticos, a novidade progressivamente identificada ficou por conta dos jovens “sem religião” que – diferenciando-se de ateus e agnósticos – declaram ter fé, mas não ter vínculos institucionais.

Resultados de pesquisas quantitativas entre jovens (Novaes, 2005; Fonseca e Novaes, 2007; Novaes, 2016) reafirmam as mesmas tendências. No momento, aguardamos a realização do Censo 2020 para obter novas estatísticas sobre juventude e pertencimento religioso no Brasil. Segundo pesquisa recente, ainda em processo de análise, realizada pelo Observatório da Juventude na Ibero-América[1], entre os jovens respondentes 34% declararam-se católicos e 44% evangélicos. Cerca de 8% disseram não ter religião, mas acreditar em Deus ou em uma força/energia superior. E 10% declararam ter outra religião (afro-brasileiras, espíritas kardecistas, orientais, entre outras).

Reafirma-se, assim, um cenário de mudanças que nos levam a constatar que boa parte dos jovens brasileiros foram socializados em famílias plurirreligiosas e movem uma nova configuração do campo religioso (Bourdieu, 1986)[2], que se apresenta menos estruturado e bem mais dinâmico e surpreendente do que no passado. Ainda que o catolicismo guarde sua importância numérica e sua influência cultural e política na sociedade brasileira, outras dinâmicas se fazem presentes. Por um lado, observa-se mais pertencimento e fixação territorial, traduzida pela presença de templos evangélicos que se espalham por todo o país, modificando paisagens nos centros e periferias. Por outro lado, observa-se mais buscas e vinculações mais fluidas, traduzidas em mais circulação e trânsitos entre religiões, em arranjos híbridos, em sínteses pessoais, em experimentações religiosas presenciais e virtuais.

Foto: Felipe Barros/ExLibris/PMI
Foto: Felipe Barros/ExLibris/PMI

Como tais mudanças no campo religioso repercutem na vida política dos jovens?

O objetivo do presente artigo é explorar intersecções entre religião e política entre jovens brasileiros que se apresentam como católicos e como evangélicos. A ideia é refletir sobre as confluências entre identidades religiosas e ativismos que – interferindo no espaço público presencial e virtual – denunciam discriminações sociais e demandam reconhecimento de direitos de cidadania.

1. As juventudes católicas: uma Igreja e suas várias vertentes

Em um texto sobre os jovens participantes da Jornada Mundial da Juventude (Rio de Janeiro, 2013), Carranza e Sofiati (2018) chamam a atenção para um jogo de negociação entre um alinhamento institucional dos jovens e “uma criativa salvaguarda de sua autonomia pessoal”, e delineam quatro  vertentes que podem ser resumidas da seguinte maneira:

  • Tradicionalista: Em contraposição à modernidade, essa vertente defende o “resgate de práticas rituais e costumes medievais”. Exemplos: Tradição, Família e Propriedade (TFP); os Arautos do Evangelho que se “consideram um instrumento de santidade da Igreja, sendo que sua espiritualidade é alicerçada na ‘Eucaristia, em Maria e no Papa’.”
  • Modernizadora-conservadora: Essa vertente tem diálogo com certos elementos da modernidade, por meio de roupagem midiatizada dedica-se à evangelização juvenil. Seu perfil é visto como conservador. Congrega jovens em movimentos como Renovação Carismática, Grupos de oração; Comunidades de Vida e Aliança; Canção Nova, Toca de Assis.
  • Reformista: Essa vertente defende os direitos humanos e práticas sociocaritativas, enfatizando a dimensão humana e social da religião. Reúne agrupamentos juvenis  presentes em escolas católicas e confessionais de elite, como Colégios Maristas e Salesianos.
  •  Radical: Essa vertente reúne setores ligados à Teologia da Libertação e aos ideais das Comunidades Eclesiais de Base, na perspectiva da “opção preferencial pelos pobres”. Seus trabalhos sociais combinam caráter teológico-pastoral e sociopolítico. Atua em sintonia com os movimentos sociais como acontece  nas Pastorais da Juventude.

Reconhecendo ainda que – dentro das quatro tendências apontadas acima – existem outras tantas variações, Carranza e Sofiati (2018) afirmam que as muitas dissonâncias não impediram que a Jornada Mundial da Juventude de 2013 tenha reforçado a instituição e reafirmado o poder hierárquico do Papa. Como sempre ocorre nessa instituição milenar – para além das disputas internas –, nas Jornadas reafirmou-se a unidade católica.

Como se sabe, a propagada “unidade católica” sempre abarcou disputas e convivências entre correntes e carismas. Atualmente, diferentes correntes pastorais disputam as bênçãos e as influências do Papa. Em seu pontificado, Francisco – como gosta de ser chamado – tem resistido a críticas de tradicionalistas conservadores, tem feito mediações entre grupos divergentes e assim tem logrado preservar a unidade institucional. Contudo, ainda que busque se equilibrar na clássica tensão entre utopia e instituição, o Papa não tem deixado de se posicionar e nem tem se furtado a acolher jovens envolvidos com lutas sociais que buscam seu apoio.

Um exemplo disto foi o telefonema que o Papa fez para Lyuara, jovem de 19 anos, filha de Marielle Franco, negra, vereadora do PSOL (Partido Solidariedade), brutalmente assassinada em 14 de março 2018, justamente por lutar por reconhecimento e direitos de grupos discriminados. Na carta, Lyuara diz que aprendeu com a sua mãe a “ter fé e a ser católica”. Mais à frente continuou: “Esse momento é de muita dor, uma espada corta nossas almas. Te peço que ore por nós, pela nossa família, pelas mulheres, pelo povo negro, pela vida nas favelas do Rio de Janeiro, pela nossa cidade e pelo nosso país. São muitos os discursos de ódio e precisamos de amor, obrigada.

Tribute To Marielle Franco por
Tribute To Marielle Franco por

Lyuara pede pelo “povo negro”, e essa é uma questão que tem mobilizado fortemente parte da juventude católica. Isto porque, especialmente a partir de 2000, cresceram no país as denúncias referentes ao alto número de agressões e mortes de jovens negros e sobre a persistência da violência da abordagem policial. Ampliaram-se então as campanhas e os movimentos destinados a enfrentar o fenômeno conhecido como “genocídio da juventude negra”.

As Pastorais da Juventude da Igreja Católica coordenaram a Campanha Nacional contra a Violência e o Extermínio de Jovens. Nesse cenário, o tema ganhou destaque e foi se tornando um ponto de intercessão que aproxima as pastorais da juventude e os demais movimentos juvenis[3] presentes na sociedade brasileira. Com efeito, o combate ao racismo tornou-se um tema aglutinador entre jovens católicos e, também, propício para incrementar diálogos entre jovens de diferentes religiões.

De maneira geral, podemos dizer que os participantes das Pastorais da Juventude, sob a inspiração dos documentos do Concílio Vaticano II (1965), ainda se mobilizam em torno das clássicas questões de terra, moradia e condições de trabalho, articulando-as ao racismo que aprofunda e realimenta as desigualdades sociais. Além disso, também incorporam as demandas referentes às questões ecológicas e aos direitos das mulheres, de grupos de gays e trans, das populações indígenas.

Entre jovens católicos engajados, as discussões e posicionamentos sobre esses temas têm se intensificado por meio do uso das novas tecnologias de informação. Contornando tensões e obstáculos institucionais, o uso de sites, blogs, canais no youtube tem dificultado os clássicos expedientes de controle das autoridades religiosas sobre seu rebanho. Um bom exemplo é o canal Muro Pequeno, criado pelo jovem baiano Murilo Araújo.

O youtuber Murilo, hoje morador do Rio de Janeiro, aproximou-se das causas sociais durante sua longa vivência na Pastoral da Juventude da Igreja Católica. Hoje, aluno de pós-graduação em Letras da UFRJ, é membro do grupo Diversidade Católica e faz parte da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, criada em 2014. Seu ciberativismo também resulta em convites de organizações nacionais e internacionais para encontros presenciais, em que se apresenta como um católico que luta pela valorização da diversidade. Em suas próprias palavras:

“Quando eu criei o canal, um dos meus maiores interesses foi exatamente visibilizar essa minha existência enquanto uma pessoa gay e católica (…) eu sou católico, eu gosto de ser católico, e a minha experiência religiosa é uma dimensão da minha vida tão importante quanto a minha sexualidade. Eu me entendo por cristão antes de me entender por gay – e é assim na vida de muita gente. Daí se você pedir pra eu deixar de ser cristão é quase como você pedir pra eu deixar de ser gay. Não vai rolar.”

Em um outro vídeo, gravado em outro canal (Bee 139 [4]), entrevistado por Jéssica (que se apresenta como católica e lésbica), Murilo afirma: “(…) A Igreja Católica tem que nos aceitar inteiros com nossa sexualidade. Sou gay. E a esquerda também tem que nos aceitar inteiros com nossa religião”. Em seus vídeos, além de lançar mão de bibliografia especializada utilizada na academia e pelos movimentos sociais, Murilo utiliza sempre citações bíblicas para contrapor declarações preconceituosas de pais, padres e pastores.

Sempre com a perspectiva de permanecer no âmbito da Igreja Católica, quando Murilo recebeu no seu canal uma militante do grupo Católicas pelo Direito de Decidir [5], ambos se posicionaram publicamente a favor da descriminalização do aborto, contrapondo-se publicamente às posições oficiais da Igreja Católica. Atingindo diretamente diferentes públicos juvenis, procura juntar forças para legitimar causas e promover mudanças na Igreja e na sociedade.

Outros exemplos poderiam ser citados. Mas o importante aqui é indicar o desafio institucional que está posto. Caberá à Igreja Católica compreender o presente e levar em conta os novos “sinais dos tempos” para (re)construir sua unidade sem excluir os jovens dessa “vertente radical” que – a um só tempo – a questiona e a revitaliza.

2. As juventudes evangélicas: entre denominações e múltiplas vivências.

De maneira geral, podemos dizer que a vinculação às Igrejas evangélicas oferece um espaço importante para a socialização e para a sociabilidade juvenil. Nas Igrejas locais, além da Escola dominical, sempre há movimentos de juventude, grupos de oração, equipes de evangelização, grupos de dança e corais. Entre os aprendizados nas Igrejas, o canto e os instrumentos musicais têm grande destaque. Para a juventude de diferentes classes sociais, as Igrejas evangélicas funcionam como local de fazer amigos, de lazer, de uso do tempo livre, de desenvolvimento da capacidade de falar em público. Mas, se tudo isso também vale para jovens de famílias ricas ou de classe média, para os jovens mais pobres as Igrejas evangélicas ganham significado adicional: representam uma possibilidade de ganho material[6] e de respeitabilidade e tornam-se uma espécie de “rede de proteção social”.

Nesses territórios[7] de favelas e periferias, as Igrejas evangélicas “são muitas vezes a única rede para fora do tráfico, das drogas, da violência doméstica” (Lisboa, 2016). Em entrevistas, jovens moradores de favelas do Rio de Janeiro – marcadas pela ausência de serviços públicos, pela violência do tráfico de drogas e pela corrupção das polícias – dizem que “ser da Igreja” pode ser uma forma de escapar de ser sempre revistado pela polícia e até um expediente para ter acesso ao mundo do trabalho.

Em sua tese de doutoramento sobre religião e amizade entre jovens assembleianos na Baixada Fluminense, Magalhães (2016) confirma o funcionamento da Igreja como um local central para a sociabilidade, convivência e lazer e, também, discorre sobre uma “resistência silenciosa” no que diz respeito a usos e costumes: os jovens separam a roupa de ir à Igreja da roupa do dia a dia, o que lhes dá oportunidade de se sentirem mais próximos de outros jovens na escola e no trabalho.

Outra situação que poderia ser classificada como de “resistência silenciosa” diz respeito aos ataques às religiões afro-brasileiras. Vivendo em uma família plurirreligiosa, Lisboa (2016) afirma que, mesmo quando estava ativamente ligada à Assembleia de Deus, tinha certeza que “Orixá não era demônio disfarçado”. A experiência religiosa anterior com o candomblé, o afeto e a convivência familiar funcionaram como um filtro cognitivo para selecionar e reinterpretar as mensagens veiculadas na Igreja. Essas observações nos fazem pensar que as pregações religiosas não são nunca absorvidas totalmente como blocos monolíticos.

Por outro lado, entrevistados dizem que nas eleições é comum votar “com o pastor”. É para jovens que se dizem distantes da política que a mediação do pastor mais funciona. Mas, se o “voto por proximidade” (Lisboa, 2016) tornou-se uma regra, são muitas as exceções. As vivências na escola, no mundo do trabalho e nas redes sociais também os conecta com outras narrativas políticas que circulam pela sociedade. Este é o caso de Pedro Rebelo, 27 anos. Entrevistado por Ribeiro (2019), ele conta que aos 17 anos era “assembleiano roxo, demonizava o candomblé e não era reaça no sentido político, votava em Lula”. Sua história nos alerta para evitar generalizações apressadas e ouvir mais para melhor conhecer arranjos pessoais que – muitas vezes – misturam elementos que, em nossos esquemas teóricos, aparecem separados enquanto comportamentos conservadores e progressistas. Outros exemplos poderiam ser dados no sentido de diferenciar e não homogeneizar os posicionamentos da chamada “juventude evangélica”.

Em termos de sistematização de resultados de pesquisa, entretanto, a contínua segmentação denominacional, a circulação de jovens entre denominações, a vivência de jovens entre Igrejas e pastores não nos permitem comparar percepções de jovens evangélicos a partir de um único evento institucional, como fizeram Carranza e Soffiati (2018), para identificar diferentes vertentes no interior da unidade Igreja Católica. Ainda assim, mesmo sem poder falar em “vertentes” no interior de uma mesma instituição religiosa – por meio de observação direta, de pesquisas qualitativas e da bibliografia disponível –, é possível atentar para um campo de possibilidades e destacar quatro situações que nos ajudem a refletir sobre as relações de jovens evangélicos com o mundo da política.

  • Sectários: Considerando-se em “guerra espiritual”, uma parcela de jovens evangélicos evoca os dons do Espírito Santo e, “em defesa da família”, se posiciona contra as propostas de descriminalização do aborto, denuncia a chamada “ideologia de gênero”. Seu ativismo inclui ações como “passar óleo ungido nas portas de lojas de produtos religiosos” e atacar terreiros de umbanda e de candomblé.

Em vídeos disponíveis na internet, percebe-se que muitas vezes argumentos e referências bíblicas utilizadas por essa parte de jovens evangélicos os aproxima de jovens católicos ligados à Renovação Carismática Católica[8], os “modernizados-conservadores”, para usar mais uma vez a classificação de Carranza e Sofiati (2018).

  • Assistencialistas: Considerando-se em missão de fé, são muitos os jovens evangélicos que participam em campanhas e ações sociais desenvolvidas por suas Igrejas, aprendendo a reconhecer quem precisa de ajuda e colocando em prática o valor da solidariedade. Lisboa (2016) afirma que, quando era evangélica, “passava as madrugadas orando por pessoas em situação de rua e entregando pão com mortadela para elas. (…) Virei muitas noites da última sexta-feira do mês nas vigílias da Assembleia de Deus em Madureira (…).”

Esse aprendizado pode permanecer nos limites do pertencimento religioso, mas também pode se desdobrar em outros tipos de participação em organizações estudantis, movimentos de favelas e periferias e mesmo partidos políticos. Em entrevistas, ouvi de vários jovens que ações sociais nas Igrejas foram determinantes para suas trajetórias políticas.

  • Autônomos: São jovens que se declaram evangélicos mas não estão congregados em uma denominação específica[9]. Entre esses, podemos destacar: a) jovens egressos de denominações evangélicas; b) jovens que se aproximaram através da “cultura evangélica” que se faz presente hoje na sociedade brasileira, nas manifestações artísticas, em territórios periféricos, nas redes sociais.

Como exemplos de egressos, Silvia Fernandes (2018) – em seu estudo realizado em “região periférica do Rio de Janeiro” – nos apresenta jovens que deixaram denominações evangélicas após questionarem pastores no que diz respeito a questões financeiras (“coleta de dinheiro” e “trocas entre dízimos e graças divinas)” ou questões de interdições comportamentais (na maneira de vestir) e opiniões conservadoras.

Como exemplos de aproximação da “cultura evangélica”, em pesquisa realizada no Rio de Janeiro, conheci jovens que, sem ter tido vínculos institucionais, mostraram-se muito familiarizados com o que se passa no “mundo evangélico”, aqui evidenciado em programas de televisão, nas redes sociais, em canais do youtube, em sites onde circulam memes de cunho religioso, clipes de hip hop gospel. Nos novos modos de “ser evangélico” vale “baixar” músicas, cultos e louvores a qualquer hora do dia ou da noite. Buscam e escolhem “fervor” e fruição da palavra de diferentes pastores.

Os desdobramentos da aproximação desta “cultura evangélica” são variados. Exercitam sua autonomia religiosa e, em termos políticos, suas opiniões e engajamentos são variados e se distribuem nas várias posições existentes no campo político brasileiro. Uma parte soma essa vivência virtual ao comparecimento em grandes eventos públicos, como a Marcha para Jesus. Outros se engajam em movimentos culturais, como é o caso do hip hop gospel. Entre esses estão famosos rappers evangélicos que fazem críticas “ao sistema”, denunciam racismo e afirmam seu compromisso social.

Engajados: São jovens que, provenientes de diferentes denominações e com variadas histórias de vida, se articulam para se posicionar politicamente no espaço público, disputando a “identidade evangélica” e, assim, se contrapondo às pretensões dos “coronéis da fé”[10] , que têm se apresentado publicamente no Brasil como representantes do “povo evangélico”.

Sobre o assunto, Thamyra Thâmara de Araújo, evangélica, negra, moradora do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro­­­, deu o seguinte depoimento: “É preciso que a gente entenda que evangélico não tem uma cara só. (…) A identidade evangélica está em disputa e tem uma galera comprometida e engajada levantando a bandeira do acolhimento, do respeito à diversidade, do amor fraterno e da dignidade humana”.  Thamyra, lembrando a frase de um amigo, diz: “A Igreja é tudo de bom, tirando o racismo, a homofobia e o machismo.”[11]

Por meio de blogs, sites e redes evangélicas e/ou ecumênicas, essa “galera comprometida e engajada” põe em evidência as dissintonias existentes entre as declarações públicas de pastores que têm visibilidade exacerbada na mídia[12] e as percepções de diferentes segmentos da população evangélica (Vital da Cunha, C. e Lopes, P.V., 2012). Todo esse debate repercute o trabalho realizado por grupos de jovens ligados à Teologia da Missão Integral, à Rede FALE, à Rede Ecumênica de Juventude, bem como às “Igrejas evangélicas inclusivas”[13] compostas por população LGBT.

Ao analisar o conteúdo das mensagens antirracistas que circulam em determinados vídeos, blogs, nas falas de youtubers evangélicos, percebemos a presença de argumentos e citações bíblicas muito similares aos utilizados por jovens que compõem a denominada vertente radical do catolicismo (Carranza e Sofiati, 2018).

Para concluir: o combate ao racismo como ponto de convergência entre radicais e engajados.

As religiões são porosas às mudanças das sociedades.  Na atual configuração social[14], essa porosidade – exacerbada pelo imbricamento entre as dimensões presenciais e virtuais da realidade – tem contribuído para que uma parcela da juventude não se submeta ao controle direto de uma autoridade religiosa que, em tese, poderia determinar suas escolhas, ideias e hábitos culturais.  O que não se faz sem idas e vindas, tensões e conflitos.

Se, por um lado, observa-se uma maior possibilidade de posicionamentos democráticos e para a experimentação religiosa, por outro lado, na atual conjuntura, também se produz (por reação e/ou por convicção) um aumento de fundamentalismos, sectarismos, discriminação e, até mesmo, de violências religiosamente motivadas.

É verdade que, de um lado ou de outro, nem tudo é consensual. Entre jovens ativistas, sejam eles católicos ou evangélicos, existem posições diferenciadas sobre o aborto e identidades de gênero que ainda causam ruídos de comunicação. Ainda assim, é importante chamar a atenção para passos importantes: a possibilidade de discussão sobre aborto está se ampliando e, cada vez mais, aumenta a disposição para condenar perseguições e discriminações que sofrem jovens trans e de diferentes orientações sexuais.

Entretanto, a meu ver, o passo mais importante está no forte ponto de convergência que o combate ao racismo estrutural vem se tornando. Sem dúvida, o chamado “genocídio da juventude negra” e a perseguição às religiões afro-brasileiras – praticada sobretudo por certos segmentos que se apresentam como “evangélicos” – trouxeram a questão racial para o centro do debate público e sua urgência tem sido um motivo de aproximação entre movimentos sociais e grupos religiosos, inclusive de “jovens de terreiro”.

Por falar em “jovens de terreiro”, vale notar um deslocamento importante: a grande maioria dos adeptos das religiões afro-brasileiras ainda se autodefine primeiramente como católica, mas, hoje, aumenta o número de jovens que questionam o “duplo pertencimento”, que historicamente caracterizou as relações de subordinação das religiões afro-brasileiras ao catolicismo dominante. Associando “racismo estrutural” e ancestralidade comum, denunciam a dupla discriminação racial e religiosa.

Infelizmente, mesmo somados, esses grupos de jovens – católicos, evangélicos e de terreiro – não alcançam representatividade estatística. São segmentos minoritários. Mas isto não diminui a importância de suas iniciativas, que positivamente fazem diferença na conformação de posições e oposições e nas disputas no campo religioso e no campo político.

No atual momento histórico, desconstruir generalizações apressadas e dar visibilidade às iniciativas desses jovens ativistas, religiosamente motivados, não deixa de ser uma maneira de contribuir para desidratar posições preconceituosas que causam sofrimentos e aceleram processos de exclusão juvenil. Seus pensamentos e iniciativas fazem diferença imediata no combate ao racismo, questão fundamental para a construção do espaço público democrático no Brasil.

Logo del Observatorio de la Juventud en Iberoamérica (OJI)

Regina Célia Reyes Novaes

Antropóloga com doutorado pela Universidade de São Paulo

Notas

  • [1]

    Nota da edição: A pesquisa mencionada, que conta com a participação da Professora Regina Novaes, encontra-se em estágio de análise e tem previsão de divulgação no segundo semestre de 2020.

  • [2]

    Bourdieu (1986) define campo como um conjunto de práticas e valores específicos, formado por diferentes atores, instituições, discursos e forças em tensão, onde tudo adquire sentido em termos relacionais, por meio de posições e oposições. A partir dessa concepção, no presente artigo, usaremos as expressões “campo religioso” e “campo político”

  • [3]

    Outras iniciativas podem ser citadas: Campanha Reaja ou Será Morto ou Será Morta, organizada por entidades do movimento negro da Bahia (2005); Campanha Nacional contra o Genocídio da Juventude Negra, coordenada pelo Fórum Nacional de Juventude Negra (2009); Marcha Estadual Contra o Extermínio da Juventude Negra (2010), promovida pelo Fórum Estadual de Juventude Negra do Espírito Santo (Fejunes); Campanha “Eu Pareço Suspeito?” (2012), lançada por organizações do movimento negro do estado de São Paulo; Campanha Juventude Marcada Para Viver, realizada pelo Observatório de Favelas (2013).

  • [4]

    Ver no Youtube: Canal das Bee (fundado em 18 de outubro de 2016) com 72.190 visualizações em 29/08/2017.

  • [5]

    Católicas pelo Direito de Decidir é um movimento político internacional formado por mulheres católicas, que reivindicam principalmente direitos reprodutivos, pela autonomia das mulheres sobre o próprio corpo e contra a violência de gênero. Ver: http://www.catolicasonline.org.br . Acesso em abril de 2020.

  • [6]

    É bom lembrar que muitas denominações veiculam um cativante discurso que acena para a prosperidade material.

  • [7]

    Território é a relação entre espaço, política e poder. É o espaço apropriado (Lopes de Souza, 2003).

  • [8]

    Sobre jovens carismáticos, ver Sofiati (2011).

  • [9]

    Segundo o Censo de 2010, os 22% da população que é evangélica estavam assim distribuídos: 4% de evangélicos de missão/históricos, 13,3% de evangélicos pentecostais e 8% foram classificados como “evangélicos não determinados”. Trata-se de um aumento significativo (com 9,2 milhões de respondentes) daqueles que se autoclassificam apenas como “evangélicos” sem explicitar vínculos institucionais.

  • [10] A feliz expressão “coronéis da fé” foi usada primeiramente pelo Pastor Ariovaldo Ramos e também pelo Pastor Henrique Vieira, ambos do campo progressista, para designar os pastores que se colocam como porta-vozes de pautas conservadoras.
  • [11] Ver depoimento de Thamyra Thâmara em Fernandes e Conrado (2017)
  • [12] Como se sabe, lideranças evangélicas comandam rádios e TVs. Além de usufruir de concessões públicas, também praticam aluguéis sem autorização, fazendo subconcessões e negociações publicitárias.
  • [13] Sobre o assunto, ver Natividade (2017)
  • [14] Norbert Elias (1994), em sua caracterização de “configuração social”, enfatiza as ligações entre as mudanças na organização estrutural da sociedade e as mudanças na estrutura de comportamento e na constituição psíquica dos indivíduos sem dicotomizar “indivíduo e sociedade” (1994).

Referências

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  • FERNANDES, C.; CONRADO, F. (org.). Reimaginar a Igreja no Brasil: 40 vozes evangélicas. Editora Novos Diálogos, 2017.
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